quando leis para incluir acabam ferindo

Aqueles que me acompanham sabem que eu costumo tratar a pesquisa como um imenso jogo de futebol. É o meu jeito de amenizar subjetivamente a fé cega no avaliacionismo. Estava claro que meu aluno era um craque. Corria o campo todo, voltava para marcar, tinha espírito de grupo e muita sensibilidade nas horas difíceis. Mas foi então que percebi uma coisa a mais, quando meu colega comentou, meio surpreso: “é tudo verdade! Mas você não reparou que ele é negro?”. Naquele tempo, a USP ainda discutia se teríamos e como seriam as cotas. A nova discussão sobre racismo estrutural estava emergindo. Mas, de fato, sofri, ainda que de forma indireta, com o efeito de embranquecimento daqueles que se destacam, como descreve a psicanalista Virgia Bicudo.

Meu pequeno craque evoluiu como se esperava. Iniciação científica exemplar, mestrado de primeira qualidade, doutorado com bolsa sanduíche no exterior com tema inédito e original com grande repercussão política. Durante esse tempo ele se destacou “jogando” também pelo Laboratório de Filosofia, Teoria Social e Psicanálise da USP, mas também se tornando uma liderança para esta jovem geração de pesquisadores que levam em conta os estudos decoloniais, as questões de raça, gênero, orientação sexual como parte da pesquisa e das decisões de métodos. Durante este tempo todo, havia momentos em que encontrava com ele no café da Psico e ele vinha meio exausto. Eu brincava que aquelas baladas iam acabar com ele. Ele respondia, meio brincando na primeira vez, mas depois meio sério: “Chris, eu tenho que pagar as contas da casa, moro longe, e tenho que tocar na noite para me sustentar porque a bolsa não tá dando”.

Foi ali que percebi que, ao contrário de meus outros alunos, que tocavam na noite para fazer uns trocados a mais ou para se divertirem flertando com a carreira de músico, ele tinha que fazer dinheiro como músico.

Veio o casamento e a filhinha querida. Cheguei a conhecer a mãe de meu artilheiro, negra como ele. Durante este tempo, ele havia percebido a importância de sua própria trajetória e o sentido ainda muito claro de sua excepcionalidade. Passou a falar sobre isso nos congressos de psicanálise, debateu em favor da retomada da importância da negritude e do processo de racionalização na ciência, mas também nos processos clínicos de indicação de pacientes, supervisão e formação de psicanalistas.


Chegou então o dia em que se abriram dois concursos para professor na USP, em meio ao caos das aposentadorias, das greves por mais docentes, dos cursos paralisados e dos clamores por mais professores negros. Ele se tornou imediatamente o candidato da torcida para os dois concursos nos quais se inscreveu. Fogos de artifícios, churrascos comemorativos vieram com a sua aprovação em indiscutível primeiro lugar. Corremos todos para o abraço e para a zueira de vestiário destes momentos antológicos de título.

Após duas semanas, ele partiu para a banca de heteroidentificação. Ao se inscrever, ele responde à pergunta sobe raça: pardo. Após a banca, ele cai da cadeira quando os três membros, dois professores e uma aluna pretos, concluem: “candidato não apesenta fenótipo negro”. Certo de que se tratava de um engano, ele recorre do processo e recebe a mesma sumária resposta, agora traduzindo, para deixar claro a violência da mensagem: “você não é negro, logo você é branco e ademais está tentando fraudar um concurso público“.

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