O que é pânico e como ele pode ser curado pela palavra?

A nova edição do livro de Mario Eduardo Costa Pereira, “Pânico e Desamparo”, lançado pela primeira vez em 1999, representou para nós o caso inaugural e representativo de um grupo de jovens pesquisadores que voltara de Paris com um novo acento e um projeto original.

Traziam na mala a elegância demonstrativa e o domínio insubmisso das obras de Freud e Lacan, mas também inflexões como Torok e Derrida, Fédida e Monique David-Ménard, capazes de reunir a discussão clínica com a tradução filosófica e de juntar a poesia com metapsicologia. Por isso digo que a geração de Angela Vorcaro, Nelson da Silva Jr., Maria Helena Fernandes e José Luiz Caon encontrava no trabalho de Mario Eduardo Costa Pereira uma espécie de síntese representativa.

No início dos anos 2000 você podia ser mais simpático ao programa de Joel Birman, na pioneira Pós-Graduação em Psicanálise da UFRJ, ou engajar-se na proposta da psicopatologia fundamental, organizada por Manuel Berlinck, na PUC de São Paulo, mas você não podia desconhecer que Mario e sua turma tinham trazido um novo jeito de fazer psicanálise a partir da psicopatologia e da filosofia.

Durante anos, à frente da seção de história da Revista Brasileira de Psicopatologia Fundamental, por meio dele podíamos lentamente entender o que tinha sido a experiência da clínica clássica e sua importância decisiva, ainda que recorrentemente negada, na formação da psicanálise.

Junto com o grupo de Jurandir Freire Costa e Benilton Bezerra Jr., do Instituto de Medicina Social da UERJ, o trabalho de Mario no departamento de psiquiatria da Unicamp representava para nós o melhor da psiquiatria crítica e pensante.

Em meio à vaga neurocientífica que varria a psicanálise para baixo do tapete da pseudociência anacrônica, os trabalhos de Mario representavam o caminho da lucidez e da inovação.

Contra a perspectiva pragmática e operacional, contra a promessa de cura farmacológica do pânico e contra a o discurso ideológico que “pretende desimplicar o sujeito em sua relação com o sofrimento” tínhamos o projeto de refazer a psicopatologia psicanalítica, corroída por anos de empréstimos mal feitos, de denegações e camadas sucessivas de soberba ignorância preconceituosa.

Com sua elegância discreta Mario mostrava que as virtudes e razões da nova psiquiatria não apagavam a potência e importância da escuta do sujeito. Mais adiante ele orgulhou a todos conquistando um posto na universidade francesa, retornando mais adiante para organizar seu Laboratório sobre o Sujeito, de novo na Unicamp.

Mas assim como Mario retornou ao Brasil, seu livro retorna na condição de um clássico, agora também por um segundo motivo. Sumariamente, depois destes vinte anos vimos quanto suas intuições de proposição e método eram lúcidas.

O recente desastre representado pela carência de marcadores biológicos do DSM, em sua quinta edição, de 2013, parece ter sido apenas o início de uma volta ao tipo de reflexão diagnóstica que se encontrará no presente livro. Um sinal ainda de que é altamente indesejável praticar psicopatologia sem história.

Falsas promessas que se repetem, erros que nada ensinam e oposições improdutivas mostraram-se, no decorrer deste tempo, apenas e tão somente um capítulo do atraso científico, do qual padecem, cada qual a seu modo, psicanálise e psiquiatria.

Mario teria antecipado um conceito que hoje emerge crucial tanto para a articulação da saúde mental com a teoria social, quanto da epidemiologia com as políticas públicas, a saber, o conceito de sofrimento.

Ao considerar o pathos humano em suas três “dimensões de paixão, de padecimento e de sofrimento passivamente experimentado”, ele introduz simultaneamente um princípio de interconexão entre psicanálise, psiquiatria, filosofia e literatura.

Este princípio será fundamental para derrubar o principal equívoco da psiquiatria ascendente nos anos 2000 e declinante nos anos 2020, a saber: a ideia de que a forma como o sujeito interpreta e vive sua experiência com pathos, neste caso o desamparo e o pânico, nada interfere, nada afeta e nada transforma nos mecanismos causais deste sintoma ou desta condição.

Colhemos agora os frutos de uma geração inteira criada à base da crença de que as doenças mentais são como uma espécie de diabetes da alma, cuja carência de produção de um neurotransmissor precisa ser compensada, cronicamente, pela ingestão de um princípio compensador: o antidepressivo, o tranquilizante, o neuroléptico.

Concorre com isso a tese de que o tratamento psicoterápico não é um treinamento adaptativo ou performativo de habilidades e tarefas, mas uma verdadeira experiência de transformação.

Por isso, o livro de Mario é simultaneamente um clássico antigo e atual. Uma advertência que se confirmou. Uma aposta capaz de mostrar, no contexto da recente crise mundial de saúde mental, como nós perdemos tempo.

Mas afinal o que é o pânico?

O que é pânico para além da sua irrupção incompreensível, da sua reprodução experimental (por meio do lactato de sódio), da suas alterações no hipocampo, da sua concomitância com o prolapso da válvula mitral, da sua incidência prevalente nas famílias e nos gêmeos homozigóticos ou de sua responsividade terapêutica à princípios farmacológicos como a imipramina?

Neste livro se aprenderá que o pânico é um dos destinos para a nossa condição de desamparo. Portanto, que ele é covariante com condições de vida nas quais prevalece a importância da ajuda do Outro, da dependência e da dificuldade com a solidão do próprio desejo.

O pânico (Panik) é dos quatro destinos da angústia (Angst), ao lado do terror (Schreck), do horror (Grauen) e da estranheza (Unheimlich).

Ele é também uma defesa contra a condição de desamparo (Hilflosichkeit). Defesa por meio da qual nossa angústia mais básica e ontológica é transformada em situação contingente: de falta, de perda, de separação ou de intrusão (traumática ou sexual).

Nesta situação, a angústia sinal ou realística transforma-se em uma espécie de oferecimento ou sacrifício do eu, por meio do qual ele mimetiza a sua própria perda, cuja imagem e símbolo é a morte.

A hipótese de que o desamparo oferece a condição metapsicológica para descrever o pânico não é descritiva, no sentido de que a experiência de pânico equivale ao desamparo, mas de que o pânico é um confronto, um conflito, portanto, entre o sujeito e sua limitação mais fundamental e constitutiva.

O desencadeamento do pânico envolve sempre uma espécie de queda das ilusões ou de objetos-fiadores de que o Outro está, esteve e sempre estará presente, como uma espécie de garantia existencial contra nossa precariedade.

Destaca-se a importância e a comprovação clínica de que muitos desencadeamentos de pânico são correlativos de situações de movimentação, deslocamento ou perda de lugar simbólico são decisivas para a emergência do pânico.

Muitos, mas nem todos, pois há pânicos que emergem no contexto de um luto suspenso, outros que decorrem das metamorfoses da sexualidade e há ainda os que tem uma relação direta com situações traumáticas.


Mas em todos os casos o pânico é uma espécie de recusa ou negação da indeterminação. Como se diante de muitos possíveis, vindouros e incognoscíveis, o sujeito decidisse adiantar o tempo e transformar todas as infinitas possibilidades insondáveis de nosso abismo existencial em um mesmo e atualizado aqui e agora.

Em seu trabalho sobre “Alguns motivos para separar da neurastenia uma síndrome particular qualificada como neurose de angústia” Freud (1895) descreve treze sinais compatíveis com o que, a partir do DSM-III de 1980, veio a se chamar de Transtorno de Pânico.

Além dos fenômenos corporais como suores, taquicardias, asfixias, vertigens e desarranjos gástricos e além das variantes de afeto, como a angústia, o medo e a agitação, existem dois sintomas mentais típicos e intrigantes, sobre os quais o livro de concentra: o sentimento de despersonalização (“estou ficando louco”) e o sentimento de morte iminente.

Esta parece ser a pista para situar o pânico como uma problemática do pensamento e do eu.

O fato fundamental aqui é que o pânico não se desenvolve sem uma certa interpretação do sujeito, ainda que seja pela leitura intensificadora de pequenas alterações de seu próprio corpo ou de seu destino.

Outro mérito do texto é mostrar, em toda a sua extensão, que o pânico não é um afeto que surge de modo inesperado e descontínuo da experiência do sujeito, mas que ele é um processo dotado de regularidade.

Depois da emergência do primeiro ataque surgem sintomas secundários tais como a espera ansiosa pela repetição da crise, a evitação frequentemente agorafóbica de lugares e situações, depois preocupações hipocondríacas, estados depressivos e comportamentos de dependência.

A persistência do sentimento de adoecimento e vulnerabilidade podem conduzir a sintomas terciários como alcoolismo e ideação suicida.

O fato de que o quadro é altamente incompreensível ao próprio sujeito o torna ainda mais indefeso a discursos que acentuam sua dependência, inclusive a própria hipótese que confirma a origem “exógena” da angústia.

Se o primeiro ataque é sentido frequentemente como “imotivado”, o que inclina o sujeito a percebê-lo como uma doença, isso se tensiona com as situações de pânico em combate militar ou desencadeado pela perda da referência protetora, ou seja, assim como há uma simulação biológica da indução do pânico, há uma simulação social que se pode recuperar examinando as variações semânticas do termo pânico.

Isso leva nosso autor a reconstruir a acepção de pânico em suas relações com o desamparo em Freud, depois em Bion e Winnicott e em seguida em Lacan, sem falar nos precedentes mitológicos e filosóficos.

Esse trabalho não tem a finalidade enciclopédica mas está a serviço de um método que reconhece na variação histórica das nomeações o princípio mesmo de abordagem das entidades psicopatológicas. Ou seja, é nas variações de nomeação, nas oscilações descritivas e nos esforços de estabilização semântica das formas de sofrimento que se perceberá uma forma de pensamento e a emergência dos critérios de rigor que se pode esperar no campo psicopatológico.

Não há, portanto, nem subordinação nem orientação sinóptica das narrativas e discursos nos quais o pânico emerge, mas um hibridismo de incidências que nos dá a real tessitura de como um sintoma pode e deve ser abordado.

Isso prepara e ajuda a entender porque os casos clínicos, apresentados ao final, não adquirem o sentido de exemplificações ou ilustrações, mas de novos incidentes na série das nomeações históricas desta modalidade de sofrimento.

Neles se perceberá a recorrência dos temas antes tratados, desde a solidão até a separação, desde o sentimento de dependência até as rupturas traumáticas ou até mesmo a sutil economia libidinal que atravessa o pânico. Tudo se passa como se o desamparo que não se subjetiva no simbólico retorna o real do pânico.

Beckett e Clarice Lispector

Contudo, é na parte final onde a tese do desamparo-pânico é trazida na chave literária, respectivamente em “Rumo ao Pior” (Worstward Ho), de Samuel Beckett, e “A Paixão Segundo G.H.”, de Clarice Lispector, que se percebe melhor o quiasma da incidência diferencial do pânico.

Beckett é exemplo maior do pânico como experiência improdutiva de determinação. A orientação para o nada, o recomeçar no fracasso, a burca ativa do nada, exploram a vertente na qual o pânico é uma maneira alérgica e reativa de resistir e permanecer na identidade e na preservação de si, com suas ilusões e esperanças.

Nesta vertente o pânico parece se curar por uma espécie de desistência, de despossessão, de renúncia radical a nome ou das razões em torno do qual tudo se justificaria, inclusive a vida e o ser.

Esta solução parece se opor ao caminho tomado por Clarice no qual o pânico se ultrapassa por meio da descoberta do valor produtivo da indeterminação. Transformar-se em barata, reconhecer-se epifanicamente uma barata, ingerir antropofagicamente uma barata, tudo isso se passa por meio da perda e recuperação do pequeno espaço depósito do quarto da empregada, que desterritorializa a protagonista, motivando sua travessia do desamparo.

Ambos Beckett e Clarice parecem concordar que entre o desamparo e o pânico há uma travessia, mas para o primeiro ela passa pela perda do ser, para a segunda pela desumanização do vivente.

Ambos narram o encontro com o abismo, mas para o primeiro este é um encontro que demanda reconhecimento de uma falta fundamental traumática, para a segunda isso implica perda e separação do objeto residual, que protege contra o desamparo, fonte e causa do mal-estar.

É a impossibilidade de subjetivação dessa dimensão de desamparo que conduz o sujeito ao pânico ao passo que é a elaboração dessa mesma problemática que fundamenta, em última instância todas as chances de um tratamento psicanalítico. O sujeito que chegou à cura através da via analítica foi alguém que teve sucesso lá onde o indivíduo em pânico fracassou.

Recupera-se aqui a intuição lacaniana de que a análise leva a um encontro com o desamparo e que nela trata-se de encontro traumático com a falta, mas também com a perda e separação.

Os casos clínicos trazidos têm o mérito da simplicidade, tão bem-vinda para nossa situação atual, onde se trata de mostrar como o pânico se trata sim pela palavra.

A cura do pânico pela palavra é uma ideia que parece ter saído do senso comum, que se habituou a percursos de solidão e carreiras farmacológicas cada vez mais precoces.

Ele tem o mérito de apresentar como a narrativa do sofrimento colocada e colhida sob transferência, torna-se a maneira mais óbvia e eficaz de reintroduzir o desamparo como amigo da existência e não como fracasso performativo.

Em uma época na qual falar do que se faz de modo claro e efetivo tornou-se raro, este é mais um indício contundente de como o livro de Mario Eduardo Costa Pereira já renasce como um clássico.

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