Os canais do YouTube ‘sequestrados’ para promover golpes e remédios milagrosos

Plataforma do Google permite que conteúdos fiquem no ar e ainda sejam destacados em anúncios. Especialistas apontam ação de golpistas para manipularem vítimas a caírem em fraudes. Verificado e com 645 mil inscritos, o canal de funk no YouTube “Metralha dos Fluxos” não tem mais publicado vídeos de músicas.
No último mês, os vídeos postados promovem dinheiro fácil, como o golpe com o nome da Shein, ou um remédio com promessas milagrosas de aumentar o pênis e resolver disfunções sexuais.

Os vídeos, gravados por pessoas anônimas, seguem um roteiro muito parecido: começam como se fossem avaliações de clientes que testaram os serviços, mas servem apenas para propaganda e direcionam a sites repletos de indícios de fraude.
As pessoas que tomam controle dos canais e as que gravam esses vídeos podem ser enquadradas no crime de estelionato, segundo Matheus Falivene, doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP).
Isso porque podem enganar pessoas, que vão gastar seu dinheiro por promessas falsas (veja abaixo os relatos de quem sofreu com os golpes).
Segundo especialistas entrevistados pelo g1, o caso do canal de funk mostra uma das estratégias de golpistas: “sequestrar” canais relevantes para publicar vídeos que manipulam novas vítimas.
A reportagem encontrou outros 27 canais como o “Metralha dos Fluxos”, que fogem de sua proposta (música ou futebol) para publicar vídeos promovendo fraudes.
De todos esses perfis, o YouTube removeu apenas um, por ver violação de suas diretrizes. Outros 27, incluindo o “Metralha dos Fluxos”, somam 12 milhões de inscritos e continuam no ar com propagandas de fraudes.
Esta reportagem vai te mostrar:
como os canais são “sequestrados”;
o tamanho da prática;
a estratégia de manipulação;
os relatos de vítimas;
a estrutura por trás do golpe;
como moderação do YouTube é contraditória.
Os canais ‘sequestrados’ para defender promessas financeiras e remédios milagrosos; FOTOS

Como os canais são ‘sequestrados’
O chefe de segurança da Kaspersky Lab, Fabio Assolini, cita três estratégias de golpistas para tomar controle do canal:
criminosos hackeiam o canal, trocam a senha e não permitem mais que os donos originais retomem a página;
A página é vendida, prática que não viola as diretrizes do YouTube;
Também existe a possibilidade de que o dono do perfil decida promover esses conteúdos.
Os canais atingidos têm grande quantidade de inscritos e às vezes são até verificados, o que dá mais alcance aos vídeos.
” Eles [golpistas] são insistentes: se a página sai do ar eles colocam outra, se o vídeo é retirado do ar, colocam outro. Se 10 pessoas caírem no golpe, ele já vai estar no lucro, porque não existe o produto verdadeiro”, afirma Assolini.
As pessoas dos vídeos levantam a dúvida se o produto é um golpe, mas sempre terminam desmentindo a possibilidade e afirmando que testaram com sucesso.
“É para as pessoas que fizerem uma busca, vejam essas análises e falem: ‘isso realmente funciona.”
O tamanho da prática
O g1 analisou 50 vídeos de páginas com centenas de milhares de seguidores que passaram a promover fraudes com vídeos gravados por pessoas que teriam aderido aos serviços.
Essas 50 publicações somam 255 mil visualizações em 28 canais que, juntos, têm 11 milhões de inscritos.
A reportagem separou vídeos promovendo duas fraudes para analisar:
os sites e apps do “Avaliador de Marcas” ou da “Money Looks”, que dizem pagar usuários por avaliar roupas da Shein, prática negada pela própria loja;
o remédio milagroso “Testo Caps”, também chamado de “Testo Power Caps” ou “Testo + Caps”: que promete eliminar ao mesmo tempo disfunções sexuais e até aumentar o pênis, algo que só é possível através de cirurgia.
Nos canais “convertidos”, existe mais uma série de conteúdos que promovem outros serviços com promessas de dinheiro fácil e indícios de fraude, como:
“InstaMoney” (remuneração por curtir publicações);
“TikTok Pay” (remuneração por assistir vídeos);
“Velho Rico” (remuneração por conversas com pessoas mais velhas);
“Opinião Certa” (remuneração por dar opiniões em sites de empresas);
“Razagan” (promete aumentar tamanho do pênis, retardar ejaculação e “controle total das ereções)”;
“Hidrozon” (promete livrar a pele de manchas e rugas).
Estes vídeos não entraram na conta da reportagem, porque seriam centenas de publicações a mais na análise.
Estratégia de manipulação
Os vídeos seguem um padrão:
pessoas anônimas gravam o próprio rosto, em vídeo que tem como proposta avaliar a qualidade do serviço;
os youtubers até pedem cuidado com “sites falsos” do serviço, que seriam os responsáveis pelas pessoas caírem em golpes;
no entanto, no decorrer do vídeo a pessoa promove o serviço: diz que conseguiu ganhar dinheiro, no caso do “Avaliador de Marcas”, ou fala dos supostos benefícios à saúde sexual masculina do medicamento “Testo Caps”;
a descrição do vídeo mostra os supostos “sites oficiais”: endereços repletos de indícios da fraude;
a mesma pessoa pode aparecer em vários canais, gravando mais de um vídeo para promover o mesmo serviço;
Os vídeos só recebem comentários positivos, que, segundo especialistas, são escritos através de contas hackeadas ou automatizadas pelos golpistas.
A reportagem não conseguiu identificar as pessoas que gravam os vídeos, por isso os rostos foram borrados.
Também não foi possível entrar em contato com os canais que foram demonstrados nas imagens acima, incluindo o “Metralha dos fluxos”.
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Relatos de vítimas
Na busca por sites de reclamações de empresas, é possível encontrar diversos relatos de pessoas que caíram nos golpes. Como, por exemplo, na aba do site “Reclame Aqui” sobre o “Testo Power Caps”:
“o produto NÃO funciona e pior me causou problemas de saúde”;
“produto não cumpre o que promete, lesando o consumidor. Sei que já estou no prejuízo e vou continuar assim”;
“Até o momento não recebi o produto”.
A aba do “Avaliador de Marcas” no site têm relatos parecidos:
“Você terá que pagar sempre pra ter acesso e pagar pra sempre ter como avaliar. Enganação, fazendo o pessoal perder o dinheiro que já não tem”;
“Eu investi e comprei todos os produtos e não recebi nada em troca, mal consigo entrar no app, é pura malandragem”.


A estrutura por trás dos golpes
Além dos vídeos mantidos no ar no YouTube, os serviços contam com o suporte de empresas de processamento de pagamentos.
O golpe com o nome da Shein, por exemplo, geralmente usa os serviços da empresa Perfect Pay para processar os pagamentos de pessoas que acreditam que vão ganhar dinheiro avaliando as roupas.
O Registro.br, que administra domínios de site com final “.br”, aponta que o proprietário do site da Perfect Pay é Leonardo Rosa Zanette.
O g1 entrou em contato com ele no e-mail indicado pelo Registro.br, mas, até a última atualização desta reportagem, não houve resposta.
A reportagem também procurou a empresa, que afirmou, em mensagem automatizada, não realizar vendas de nenhum produto e ser apenas uma intermediária para processar os pagamentos.
Especialista em segurança digital, o engenheiro de software Vinícius Gallafrio explica que esses vídeos também podem ser impulsionados pelo mercado chamado de “PLR”, em que as pessoas revendem produtos digitais que pertencem a terceiros.
“Nem sempre esses produtos têm eficácia comprovada. Na prática, uma pessoa faz anúncios de cápsulas de emagrecimento e ganha uma comissão em cima da venda.”
Por isso, uma prática que pode existir no mercado é a de compra de depoimentos para as páginas de venda, diz Gallafrio.
“Nas vendas desses ‘infoprodutos’, para passar mais credibilidade, são inseridas provas sociais, onde pessoas atestam ter usado o produto e obtido resultados fenomenais”, explica.
O que diz o Youtube
Por meio de sua assessoria, o YouTube afirmou que apenas um dos 50 vídeos enviados pela reportagem foi removido, junto com o canal que o hospedava, por violar as políticas da plataforma contra spam, práticas enganosas e golpes.
Várias das publicações mantidas no ar, no entanto, promovem o mesmo golpe do vídeo removido: o aplicativo “Avaliador de Marcas”.
Além disso, a própria plataforma divulga, em seu site, que as “Diretrizes de Comunidade” não permitem vídeos com promessas exageradas como “afirmar que os espectadores podem enriquecer rapidamente” ou de um tratamento milagroso que “pode curar doenças crônicas como o câncer”.
No entanto, a assessoria de plataforma completou seu comunicado afirmando que os conteúdos do YouTube “precisam seguir nossas Diretrizes de Comunidade” e que conta com uma combinação de sistemas inteligentes, revisores humanos e denúncias de usuários para identificar o material.

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