Como ‘Teoria King Kong’ leva ao teatro debate sobre corpos inadequados

Uma luz emitida por uma super-nova, que talvez não exista mais. Há um título bem escolhido para representar a monstruosidade em cada uma. É quando o jogral canta em uníssono: “Você não está bem”. Mas isso não é dito como uma ordem, uma proclama ou uma verdade revelada. A estranheza crítica vem de que o dizer parece um jingle, humorado, paródico e auto-irônico. Como que a captar que este “Você não está bem” pode se tornar apenas mais uma estratégia de submissão e silenciamento, como a loucura histérica, a hipocondria induzida, o sentimento de cair como um papel de parede amarelo, rasgado, caindo de uma parede envelhecida.

Outra solução chave da peça é a cena do canivete. Durante o estupro, conduzido por três homens contra seu corpo, Despentes se fixa mentalmente no canivete que está no seu bolso. Ela o maneja com facilidade e poderia tirá-lo rapidamente para enfrentar os agressores. Mas esta ideia não lhe vem. Ela está dominada pela ideia que a arma não seja achada pelos estupradores. Ou seja, em vez de usar o canivete em defesa própria, ela se paralisa em estado de desamparo e temor extremo de que o outro possa tomar seus próprios recursos, suas defesas, suas proteções e usá-la contra ela mesma.

É aqui que peça encontra a controvérsia criada em torno da decisão da Fuvest de adotar apenas mulheres em sua lista de autoras para a prova de literatura no vestibular do ano que vem. É possível que Despentes criticasse a proposta, ainda que com a mesma vergonha que ela sentiu ao não sacar o canivete. Talvez ela repetisse de forma mais irônica: “Você ainda não está bem, mesmo assim”. Eventualmente ela perguntaria: onde isso vai dar se pensamos no arco histórico mais longo desta questão? Mais além dos gêneros das autoras: como elas sexualizam ou de-sexualizam suas escritas?

Quando se estuda teoria da transformação há sempre um conflito entre o desejo de mudar e a resistência. No processo de mudança desejo e resistência não atuam no ar, mas se atualizam a cada vez no espaço e tempo. Há uma tensão entre a pressa e a prudência. Assim também esperamos entre os casos que vão acontecendo na “fronteira” da mudança, quais deles serão elevados à condição de protótipo e exemplo generalizado para a mudança como um todo. É o que os antigos teóricos da guerra chamavam “batalha decisiva” e os teóricos da informação, chamam de “ponto de mutação”, ardentemente procurado pelos psicanalistas como “interpretação crucial”.


Avanços muito extensos, ou muito rápidos podem despertar reações excessivas e paralisantes. Vitórias no tempo curto podem virar derrotas no tempo longo. Não se trata apenas de ganhar ou perder. Uma vitória arrogante, gera efeitos colaterais como a sensação de humilhação. Um êxito da vanguarda, pode deixar o amargo sabor de que não estamos nos transformando a todos, como diria Sojourner Truth, mas só alguns nos usaram para obter vantagens. Ao contrário, processos, com ganhos e perdas, avanços e retrocessos, diluem a diferença no pacote final, criando o sentimento comum e um sacrifício necessário e consentido.

Mas quando temos a percepção de que há condutores e mestres, assim como conduzidos e subalternos, podemos sentir que a justiça foi feita por meios injustos. Neste caso transformações locais não se generalizam em transformações estruturais. O que diferencia as segundas das primeiras é que nelas mudamos também a lei que preside e interpreta a transformação ocorrida. O nome da rega, o significante mestre, despersonalizado e desprovido de sentido casuístico, anuncia assim a regra geral para as transformações vindouras.

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